A perda da ingenuidade musical…

06/

10/14

Os 5 estágios da perda

A psicóloga Elizabeth Kübler-Ross formulou, em seu livro “On death and dying” em 1969, um modelo das reações das pessoas à perda e ao luto. Tamanha foi sua precisão que este acabou sendo aplicado, com sucesso, aos mais diversos tipos de perdas. São cinco as etapas típicas. Nem todos as experimentam em sua plenitude, sucessivamente, ou mesmo em ordem específica. No caso da perda da ingenuidade musical, conforme vamos adquirindo conhecimento, assistindo músicos geniais tocando o mesmo instrumento que nós tocamos, e experimentando instrumentos melhores, seria algo assim:

NEGAÇÃO

“Ah, mas isso não faz a menor diferença, é frescura.”

O flautista, principalmente aquele muito ligado a uma marca, modelo, fabricante, ou mesmo a um seminário ou programa de ensino, tenta se convencer de que a diferença entre uma flauta barroca e germânica, uma flauta de madeira ou de resina, é irrelevante. Dedilhados alternativos, pra quê? Afinação pura, o que é isso? Não basta seguir aquela tabela de dedilhados ou tocar as notas certas? Isso é coisa desses chatos metidos a entendedores, “puristas”. A flauta doce tem que ser uma coisa simples, para diversão apenas, para que complicar tanto? Pra que comprar um instrumento mais caro, se o de R$ 1,99 já toca todas as notas! Eu, hein! Estão querendo fazer com a flauta doce o que fizeram com o violino…

RAIVA

“Fui enganado! Maldita megacorporação sem alma!”

O flautista se dá conta de que a cor da flauta de resina, a sua marca, e o sistema de dedilhado são um mero eufemismo. A flauta germânica já não soa tão bem quanto a sua irmã mais antiga, a flauta barroca… Tudo culpa daquela megacorporação multinacional malvada, que não está nem aí para ninguém! A situação piora quando descobre que a flauta de resina de qualquer marca não possui undercut nos furos, que precisa usar uma infinidade de dedilhados alternativos para afinar corretamente, que precisa controlar o ar e que esta é a parte mais difícil da técnica (muito mais difícil que tocar as notas certas!), e que não há outra opção senão trocar todas flautas de resina por uma boa flauta de madeira, mas não pode ser qualquer uma, afinal também existem flautas de madeira muito ruins no mercado!

BARGANHA

“Se as pessoas souberem a verdade, isso muda.”

Imbuído do caráter “evangelístico”, o flautista conclui que, se todos se esforçarem, a humanidade poderá ser salva do cruel destino de ensinar tocar “a flautinha germânica” para todas as crianças carentes por toda a eternidade, sempre com o mesmo repertório: Asa Branca, Titanic, Hino à Alegria e outros pop-hits. Muitos se apegam a essa esperança. Há quem prometa que, se houver boa oferta de flautas doces artesanais nacionais de qualidade a preço acessível, nunca mais chegará perto daquelas flautas de resina, especialmente às germânicas. Neste momento também passa a se informar mais e mais sobre seu instrumento, as origens históricas do repertório, sobre as diversas maneiras de afinar corretamente, e de controlar o som para obter “o melhor resultado possível em cada nota”.

DEPRESSÃO

“Como podem continuar tocando nessa coisa horrível?”

Não importa quantos sejam os amigos convertidos, a imensa maioria ainda será dos tocadores da flautinha de plástico germânica. Tal pensamento atormenta o flautista que dedicou toda a sua vida ao instrumento, temperado por uma pitada de paranoia de que o poder das megaindústrias multinacionais é tamanho, que elas têm em suas mãos os governos de todos os países e ditam as regras de acordo com suas conveniências, e é claro, sobre todo o preconceito que recai de todos os outros músicos em relação à flauta doce; e portanto, não há esperança para tentar esclarecer os professores a valorizarem o próprio trabalho, usarem instrumentos melhores para ensinar, e exigindo do governo, das ONGs e das instituições que os empregam para comprar instrumentos com qualidade minimamente aceitável (aquela famosa da série 300 barroca).

ACEITAÇÃO

“Cada um toca o que quiser, tô nem aí! Mas eu faço diferente…”

Ciente de que há quem nunca tocou flauta doce mas usa este instrumento para (des)ensinar, e também há quem faz um trabalho sério dedicando uma vida inteira para oferecer o melhor aos seus alunos, e ainda há aqueles que simplesmente ainda não tiveram a oportunidade de ter um bom exemplo e de conhecer performances de alto nível ou de conhecer o repertório original da flauta doce tocado com instrumentos antigos, o flautista alcança um estado de serenidade em relação ao tema, e deixa de se importar tanto. Talvez as flautas renascentistas sejam conhecidas e tenham seu momento. Talvez não. Cada um sabe o que quer, o que gosta. Desde que todo mundo esteja devidamente informado, e que ninguém seja obrigado a usar instrumentos ruins pela desinformação de seu próprio professor, sem problemas.

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PS: E então… em que estado você, caro leitor, se encontra?

2 Comments to "A perda da ingenuidade musical…"

  1. A questão da flauta doce é no mínimo curiosa, acredito que mais de 70% dos brasileiros que moram nas cidades já viram uma alguma vez e tentou tocar mas são poucos profissionais e escolas boas. Apesar disto penso que a situação vai melhorar, afinal recentemente flautas modernas são criadas, série 300 que é acessível e possui melhor qualidade frente as outras de resina plástico, internet onde encontra-se textos sobre a história do instrumento entre outros assuntos como no flautadocebr, youtube com vídeos como fantasias de Teleman etc.

    • sim, existem muitas iniciativas em várias partes do mundo para mostrar que a Flauta Doce é um instrumento musical de verdade, não apenas uma ferramenta de musicalização.
      Segue abaixo um vídeo que prova isso. O grupo Seldom Sene foi campeão do concurso de música de câmara no festival de Utrecht, na Holanda. Veja o vídeo deles, que perfeição:

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