Existem 3 importantes aspectos na técnica de tocar flauta doce. O mais conhecido – e o mais fácil de desenvolver – é o dedilhado, e dentre todos, é o único visível e aparente a qualquer pessoa que assiste àquele que toca. Outro aspecto, ainda que invisível, é muito presente: a respiração e o controle do ar. Além destes há ainda um terceiro, o qual é simplesmente negligenciado por muitos que dizem tocar flauta doce. Esse importante aspecto técnico, que inclusive nos permite até falar dentro do instrumento, é o movimento da nossa língua, o qual chamamos de Articulação.
Com o movimento da língua conseguimos fazer vários tipos de ataque para cada nota, e também vários tipos de corte, desde um ataque super leve e doce até um ataque explosivo e agressivo. Assim como não cortamos o ar para falar cada palavra em uma conversa, não devemos cortar o ar para cada nota, o movimento do ar (diafragma) e da língua devem ser independentes.
A flauta doce nos possibilita uma infinidade de possibilidades neste aspecto, pois diferente de muitos outros instrumentos de sopro, podemos falar dentro dela, podemos articular qualquer vogal e quase qualquer consoante enquanto tocamos.
Aspectos técnicos da articulação
Podemos dizer que a articulação na flauta doce é a consoante que usamos no ataque de cada nota, porém esta definição não é a mais exata ou correta. Eu prefiro dizer que a articulação é a combinação de consoantes usadas em uma frase musical, pois para a música – sendo ela uma linguagem – não importa como falamos cada sílaba, mas sim, como pronunciamos cada frase ou idéia musical, de forma que ela se torne inteligível. Exatamente por esta razão, algumas articulações são peculiares a cada nacionalidade, por causa da língua materna do flautista.
A posição da língua
Devemos posicionar a língua corretamente para poder articular mais facilmente, sem um movimento excessivo da língua pois isso acarretaria em perda de agilidade.
O primeiro exercício é sussurrar “SSSSSSSSSSSSS…T!”. Com o som do “S” a língua logo atrás dos dentes incisivos se posiciona no ponto correto, e com isso preparamos para articular o “T” em seguida. O T deve ter o som claro e preciso, produzido com a ponta da língua.
O formato da boca
Dependendo da vogal pronunciada, mudamos o formato da boca ao falar; isso altera a forma em que o ar entra no instrumento, e também altera a forma que pronunciamos cada consoante ao articular, pois algumas vogais favorecem mais a articulação que outras. Obviamente, não pronunciamos a vogal ao tocar, mas devemos ter a vogal em mente ao tocar pois esta é a forma para obtermos um som mais controlado e bonito.
De maneira geral, temos a utilização das vogais U, E e I citada em todos os métodos de flauta doce em quase todos os idiomas, sendo que a vogal U é a mais utilizada nos livros. A razão disso é histórica, pois os primeiros métodos para instrumentos de sopro foram feitos na França, onde a vogal U é a mais apropriada à articulação para nativos da língua francesa. Em português, quando usamos a vogal U a língua fica muito longe dos dentes, e a vogal E é mais apropriada.
Como ideal, tanto para a agilidade quanto para o controle do ar, é que a língua se posicione o mais próximo possível dos dentes incisivos, e que a boca tenha o menor volume possível próximo aos lábios, isto é, formando um “bico” com os lábios. Para este ideal, eu costumo dizer aos meus alunos para fazer “boca de U e som de I”, experimentem fazer isso. Basta dizer “IIIII” e fazer com os lábios como se fosse “UUUUU” (é como o U francês, com biquinho). Esta posição da boca reduz o tamanho da boca e aproxima a língua dos dentes, facilitando a articulação.
Vamos comentar a algumas articulações possíveis:
Articulação simples
Dizemos articulação simples para todas articulações que não são combinadas em grupos de 2 ou mais articulações para obter um resultado específico. Geralmente usamos as consoantes “T”, “D” e “R”, mas outras consoantes também podem ser usadas ainda caracterizando articulações simples, porém, é muito menos usual.
“T”
A cada nota que tocamos na flauta, devemos articular, e esta é a articulação mais usual. Muitos professores ensinam logo na primeira aula que devemos dizer “tu” ao tocar cada nota, e essa é uma recomendação muito importante. Alguns professores também ensinam “te” ao invés de “tu”.
Como eu falei antes, sobre o formato da boca, a vogal “u” deixa nossa boca arredondada e não focaliza o ar da melhor forma para obter o melhor som da flauta. Por isso, prefiro falar para fazer “boca de U e som de I”, como o som da vogal “u” em francês. Resumindo: dizemos “ti” porém com a boca de “u”.
Importante evitar o som chiado na articulação, queremos “ti” e não “tchi”.
Dessa forma, a língua ao articular “ti” se posiciona mais à frente do que ao articular “tu”, resultando uma articulação muito mais precisa e controlável.
“D”
Essa articulação é muito parecida com o “t”, porém o resultado é uma articulação mais doce, mais leve.
Quando queremos uma frase musical mais “legato”, articulamos com “D”. Ao articular menos legato, usamos “T”. Na música barroca, podemos definir uma regra: notas em grau conjunto ou escalas, articulamos com “D” e notas em salto ou notas repetidas, usamos “T”.
Da mesma forma que antes, usamos a vogal I com boca de U.
“R”
A consoante “R” também pode ser usada, com um resultado intermediário entre o “T” e o “D”. Me refiro ao “R” como na palavra “garantia”, não como na palavra “carro” ou “computador”. Geralmente a consoante “R” vem acompanhada de combinações com outras articulações, definindo alguns padrões.
Ainda há que se ater ao sotaque, pois em algumas regiões o R arrastado (como no interior do Paraná ou no interior de SP) ou muito pronunciado como no Rio Grande do Sul. Essas diferenças de sotaque certamente aparecem ao tocar.
Outras
Como disse, ainda existem outras consoantes que podem ser usadas ainda como articulação simples. São elas: “K” – correspondente ao “T” com o fundo ou meio da língua ao invés da ponta -, o “G” – corresponde ao “D” – e o “L” que em nosso idioma praticamente não soa articulado.
Essas consoantes e algumas outras podem ser agrupadas, para formar o que chamamos de:
Articulação dupla
Chamamos de articulação dupla quando duas consoantes diferentes são agrupadas para obter um propósito técnico ou artístico, como por exemplo, articular notas muito rápidas ou fazer contrastes entre notas importantes e notas de passagem.
“T-R” e “T-D”
Estas duas combinações possíveis geralmente são classificadas como articulação simples, pois ambas as consoantes usam a mesma parte da língua – no caso a ponta – para articular.
O resultado enfatiza a primeira nota da sequência de 2 notas, ou de uma sequência mais longa de duas em duas notas. Este é o princípio do que chamamos de inegal ou inegalité, muito usado na música barroca francesa, mas também encontrado em outros repertórios.
“T-K”
Esta é a típica articulação dupla, conhecida por quase todos instrumentistas de sopro, e o seu maior objetivo é possibilitar tocar mais rápido aquilo que não se consegue tocar com articulação simples.
A razão é simples: é muito mais fácil falar “ti ki ti ki ti ki” que “ti ti ti ti ti ti”, pois a língua alterna um movimento na ponta (T) com um movimento no meio ou fundo (K), como se fosse uma gangorra.
Ainda assim, ao usar a vogal “I” ao invés de “U” é possível levar toda a articulação bem para a frente da boca, resultando numa articulação super delicada e rápida.
“D-G”
Esta é a correspondente da anterior, porém mais suave. A técnica é exatamente a mesma.
Outras combinações
Existem outras possíveis combinações, como a articulação tripla (T-K-T) para fazer tercinas ou compassos compostos de forma mais rápida.
Há também o que mencionar uma outra combinação, ensinada pelo italiano Silvestro Ganassi como te-re-le e conhecida nos países de língua inglesa e alemã como di-dl, que permite uma articulação ainda mais rápida do que a articulação dupla, onde a língua faz movimentos laterais e não apenas de ponta e garganta.
Como sei onde usar cada articulação?
Sempre insisto com meus alunos que a música é uma linguagem, e por isso, não basta tocar apenas as notas escritas assim como não basta soletrar uma poesia; é necessário se apropriar do texto musical e cantá-lo usando seu instrumento, assim como já dizia Silvestro Ganassi no séc. XVI, que todo instrumento musical deve imitar o canto, e essa infinidade de articulações faz da flauta doce um instrumento muito próximo do canto como Ganassi nos propusera. Para tocar apenas notas certas nos tempos certos com dinâmicas certas, qualquer computador faz melhor que um ser humano, e linguagem e arte não são construídas apenas da perfeição técnica, mas sim, da fantasia do espírito humano.
Mas se a música é uma linguagem, temos que tocar de forma fluente assim como falamos em prosa, ou recitamos em verso. Devemos ter a fluência da articulação ao tocar, com a escolha correta da articulação e a “prosódia” musical para enfatizar as notas importantes fazendo contraste com as notas menos importantes.
Obviamente, não podemos escolher as articulações ao bel prazer sem levar em consideração aspectos estilísticos de cada época, país ou compositor, pois neste caso estaríamos “tocando” uma linguagem ininteligível ao público, ou alterando a essência da mensagem do compositor.
Como regra geral, podemos dizer que devemos usar articulações mais suaves (legato) em notas em grau conjunto, isto é, em notas em escala diatônica ascendente ou descendente, e articulações mais pronunciadas (non legato) em notas repetidas ou saltos. Obviamente, toda regra possui excessões, e também varia de acordo com o estilo musical tocado.
A melhor forma de aprender onde e quando usar cada articulação é pelo bom exemplo, assistindo concertos, vídeos e fazendo aulas com bons professores, sempre procurando imitar o som, da mesma maneira que aprendemos a falar nossa língua materna.
13 Comments to "Articulação – Podemos falar dentro da flauta?"
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Gostei muito do artigo, pois inclusive já havia pedido mais referência sobre articulação em outro post. A ideia do i/u francês foi muito legal. Vou tentar hoje 🙂 Pequenos trechos musicais com exemplos de articulação das notas ajudaria muito. Quem sabe em artigos futuros 😉
Às vezes acho mais fácil, e já li a respeito, articular ligados menos suaves fazendo Ru levemente em cada nota, ao invés de apenas um sopro. Acho isso mais bonito do que o som ligado com muitas mudanças de dedos. Vou dar um exemplo: um ligado que saia de um fá agudo para um dó abaixo: se eu não articular na hora do dó, me parece que fica muito feio, por causa da saída de muitos dedos da flauta.
Deixando claro que sou músico amador e autodidata, portanto, posso (ou devo) não ter a técnica para fazer o ligado usando apenas uma articulação.
suono guturale, frulato, trémolo, vibrato, são alguns dos efeitos interessantes que podem ser feitos na flauta doce
Obrigado pelo comentário!
Concordo contigo, existem muitos efeitos que podem ser feitos na flauta doce, porém este é um assunto para outro artigo. Este artigo fala sobre articulação apenas.
Muito bem explicado. Tirou minhas dúvidas sobre esse assunto. Muito obrigado. Se puderem, apenas como sugestão, poderiam falar sobre esses efeitos musicais e de como fazer?
Parabéns.
Obrigado pelo comentário!
Temos muitas idéias para novos artigos. Colocaremos mais essa idéia na lista.
Que artigo maravilhoso.
Muito bom o artigo. Como eu consigo enfatizar notas importantes em contraste com as menos importantes? Usando articulações legato ou non legato?
Usando articulações mais suaves ou mais duras, e também alterando a duração da nota. Notas mais longas são mais importantes que notas curtas.
Entendi. Depois que vi sobre essa técnica das articulações eu percebi que é como se a pessoa estivesse cantando dentro da flauta em vez de soprar: “thu ru ru ru du ru ru ru ru” só que sem o th.
Outra dúvida. Vi que articulações mais suaves servem também para notas crescentes e decrescentes e as duras(sim?) para notas repetidas e que dão saltos entre si, mas, fora isso, com a prática a pessoa acaba usando elas de modo natural ou sempre terá que ficar atento a elas?
A linguagem segue uma certa lógica, porém não se restringe à lógica. O mesmo acontece com a música.
Querer tratar a articulação dentro de uma regra fixa apenas torna a música monótona, ao invés de dar vida ao som. A articulação é o recurso expressivo mais significativo na flauta doce, dessa forma, dominar completamente esta técnica e usá-la com sabedoria é essencial para tocar bem esse instrumento.
Então era como eu imaginava, o processo acaba sendo mais natural do que mecânico. Obrigado.
Não foi isso que eu disse.
Aprender uma língua é um processo natural, toda criança aprende a falar a língua dos seus pais, sem nenhum sotaque.
Porém, isso não se dá sem esforço, ou sem que processos mecânicos sejam trabalhados, para que sons específicos sejam criados pelo movimento da sua boca e da sua língua. Se você já estudou alguma língua estrangeira, você compreenderá o que eu estou dizendo.
O objetivo final é que haja uma certa fluência na combinação de diversas articulações diferentes. Porém, até que essa fluência seja dominada, muitos processos mecânicos devem ser trabalhados.
Sim, sim eu tinha entendido. Só quis frisar que depois dos processos mecânicos aí fica mais natural.